Estudo da USP contrapõe estereótipo de que a Caatinga é sinônimo de seca e escassez

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A Caatinga abriga uma vegetação super inteligente e uma riqueza cultural incrível. Aqui na Ambiental, viajamos esse bioma há mais de 35 anos. Por isso, consideramos muito importante estudos como esse da USP.

Destinos como a Serra da Capivara (PI), Peruaçu (MG), Chapada Diamantina (BA), Cabaceiras (PE) e tantos outros, estão total ou parcialmente dentro deste bioma e nos oferecem espetáculos que vão desde pinturas rupestres, trilhas, cavernas impressionantes, formações geológicas únicas e, sempre, muita cultura.

De quebra, a caatinga ainda é o único bioma exclusivamente brasileiro, cobrindo cerca de 11% do território brasileiro, incluindo todos os Estados do Nordeste e o norte de Minas Gerais e tem, aproximadamente, 380 espécies endêmicas.

Estudo desfaz estereótipos sobre a Caatinga

A pesquisadora Andreia Bezerra de Araújo escreveu a tese RI.CA.ATINGA: o semiárido clama pela valorização de sua riqueza.

A pesquisa foi feita pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP. Nela, Andreia investigou os significados negativos atribuídos a esse bioma e propôs abordagens pedagógicas para promover uma visão mais positiva do semiárido brasileiro.

Pesquisa contou com entrevistas

A partir de entrevistas, visitas ao sertão nordestino e acesso a bibliografia científica, jornais e obras literárias, a pesquisa encontrou indícios de que a desvalorização desse bioma pode estar associada a narrativas deturpadas difundidas pela mídia, obras literárias e ações governamentais.

Viu que apesar da riqueza, a região é vista como paisagem proscrita, renegada e frequentemente associada a rusticidade, escassez, seca e miserabilidade.

A investigação começou por visitas às cidades nordestinas no Agreste Pernambucano – Bezerros, Caruaru e Gravatá – em busca de um entendimento da relação entre a região e as pessoas que nela viviam

Entre os entrevistados, estavam o famoso xilogravurista J. Borges (foto dele mais abaixo neste texto), um agente turístico e um casal de advogados:

“Os relatos encontrados contrariavam as narrativas que as mídias divulgavam sobre o povo nordestino”, diz Andreia.

Em seguida, Andreia coletou depoimentos – de forma virtual, por conta da pandemia.

Percepção das pessoas sobre a caatinga

A proposta era investigar a percepção das pessoas (64% do Sudeste, 20% do Nordeste e 14% do Sul) sobre a Caatinga antes e depois de uma ação pedagógica que ela faria logo depois da oficina.

Inicialmente, foram apresentadas ao público imagens de diversas paisagens brasileiras, incluindo Amazônia, Pantanal, Mata Atlântica, Campos Sulinos e Cerrado.

As pessoas foram questionadas a respeito de impressões que tinham sobre essas regiões e os adjetivos que associavam a cada paisagem.

Em relação à Caatinga, as respostas foram predominantemente negativas, com palavras como “morte”, “secura”, “aridez”, “deserto”, “tristeza”, “povo sofrido” sendo frequentemente mencionadas.

“As imagens verdejantes, mesmo sendo da Caatinga, foram menos apontadas, ou sequer foram selecionadas pelos participantes”, conta a pesquisadora.

A vegetação inteligente da Caatinga

Em outra etapa, a pesquisadora ministrou ao público aulas sobre questões ecológicas, culturais e sociais relacionadas à Caatinga, buscando dissociar a paisagem do estigma de sofrimento e ressequido e promover a construção de uma nova percepção sobre a região.

Entre os assuntos abordados, a arquiteta explorou características geomorfológicas como a história da formação do relevo e a sagacidade da vegetação local ao desenvolver estratégias de armazenamento de água e adaptações que minimizam perdas hídricas durante a seca.

Andreia explicou que as espécies são inteligentes e se adaptam às altas temperaturas e à falta de água através de mecanismos de economia hídrica e regulagem de excesso de luz.

Foram citados alguns exemplos da família de cactáceas: o xique-xique, o mandacaru e a coroa-de-frade, que armazenam água em seus tecidos, e o umbuzeiro, em suas raízes tuberosas.

Outras vegetações mantêm suas folhas em paralelo aos raios solares, de forma que uma menor superfície fique exposta ao Sol.

Leia também: Caatinga possui duas vezes mais espécies de flores por área do que a Amazônia (clique aqui para ler)

As árvores são de pequeno porte e os arbustos, de troncos retorcidos e com espinhos. Durante a seca, eles perdem as folhas como se estivessem mortos, mas bastam os primeiros pingos de chuva para tudo voltar à vida, reforçou a pesquisadora na atividade.

O Conhecimento muda a visão cheia de estereótipos sobre o bioma

Defensora de processos educacionais como ferramentas de transformação social, a arquiteta aplicou um questionário aos participantes após a aula sobre o potencial paisagístico da região.

“As pessoas demonstraram surpresa e admiração pelas descobertas”, afirma.

Alguns relatos refletiram sentimentos de comoção e lamento, evidenciando que a abordagem pedagógica revelou uma falta de percepção sobre a Caatinga, o que limitava a apreciação de sua rica paisagem.

Um participante comentou que sua visão sobre a região era influenciada por meios de comunicação, que reforçavam desigualdades regionais.

Outro destacou que a oficina ampliou sua perspectiva sobre as paisagens brasileiras, especialmente a da Caatinga, que antes via apenas como árida.

“Agora sei que esse bioma tem muito mais vida, fauna e flora do que o pensamento popular sugere”, concluiu.

Estereótipo do sertão nordestino

A pesquisadora investigou também artigos científicos, jornais e literatura para entender a construção da imagem coletiva do sertão ao longo do tempo.

Andreia afirma que a mídia favorece uma imagem estereotipada do sertanejo.

Em novelas, seriados e filmes, ele é retratado como um povo triste, sofredor e faminto, sempre com um visual rústico em tons de bege e terracota, similar aos retirantes descritos na literatura.

Além disso, o sertanejo é muitas vezes associado à brutalidade, com tendências criminosas ou amorais.

Em análise de práticas de políticas públicas, Andreia constatou que os governantes do País quase sempre negligenciaram a região sertaneja, privilegiando outras áreas do Brasil.

Em sua opinião, resultou em isolamento do Nordeste, sofrimento da população e domínio dos grandes latifundiários.

Segundo a arquiteta, essa estética conveniente perpetuou as desigualdades na Caatinga e também foi reforçada por parte da literatura brasileira, como as obras de Euclides da Cunha, em Os Sertões, Graciliano Ramos, em Vidas Secas, e Raquel de Queiroz, em O Quinze, postura que foi combatida pelo cancioneiro popular Luiz Gonzaga, como faz questão de ressaltar.

Literatura: Os Sertões

Em trechos da obra de Euclides da Cunha Os Sertões, o escritor denomina o sertão como fronteira entre o moderno e o arcaico.

“A descrição da paisagem passa a sensação de monotonia e imobilidade. O lugar é envolto por sentimentos de tristeza e morte. O sertanejo sofrido é retratado em sua peleja e determinação em seu cotidiano”, diz a pesquisadora.

Outro autor analisado pela pesquisa foi Graciliano Ramos, que é reconhecido por sua representação literária marcada por angústia e desolação.

“Seus personagens desesperançados vivem em um mundo desprovido de amor e alegria”, diz ela.

O elogio ao sertão em Luiz Gonzaga, Ariano Suassuna e Mário de Andrade

No entanto, outros ícones importantes da cultura brasileira, como Luiz Gonzaga e Ariano Suassuna, enaltecem o Nordeste e a cultura regional.

Em uma de suas canções, Luiz Gonzaga ilustra a representatividade das grandes feiras – que foram responsáveis pelo surgimento e crescimento de algumas importantes capitais regionais, como Feira de Santana, Caruaru, Garanhuns, Mossoró, entre outras, abastecidas pelas produções vindas dos brejos (áreas úmidas e pantanosas).

Na canção A Feira de Caruaru,  Luiz Gonzaga dizia:

“A Feira de Caruaru faz gosto a gente ver, de tudo que há no mundo nela tem pra vender… Tem massa de mandioca, batata assada, tem ovo cru, banana, laranja e manga, batata-doce, queijo e caju, cenoura, jabuticaba, guiné, galinha, pato e peru. Tem bode, carneiro e porco, se duvidar isso é cururu. Tem bode, carneiro e porco, se duvidar isso é cururu”.

Na canção Luar do Sertão, Luiz Gonzaga celebrou a noite sertaneja: “Não há, ó gente, oh! Não, luar como esse do sertão…Oh que saudade do luar da minha terra”.

A pesquisadora cita também o escritor modernista Mário de Andrade, que defendeu o semiárido nordestino em relatos de suas viagens ao Norte e Nordeste do Brasil, no final da década de 1920.

Suas observações foram publicadas em crônicas, colunas e entrevistas no jornal Diário Nacional, onde atuava como redator, em janeiro de 1929.

Depois, em seu retorno à capital paulista, Mário de Andrade concedeu entrevista ao Diário Nacional falando de suas impressões de viagem como os “três meses mais gostosos de minha vida…” (Diário Nacional, março/1929).

Nem romantizar, nem idealizar a vida no sertão: valorizar

A arquiteta faz questão de enfatizar que não se trata de romantizar a dureza da vida no sertão, mas de viabilizar condições de vida mais pacíficas durante os períodos secos, desvinculando os sentimentos de sofrimento, sem que a aridez represente um fardo ou uma fonte de angústia.

 “Trata-se ainda de reivindicar o reconhecimento e valorização de toda riqueza que envolve a Caatinga e as paisagens semiáridas, tanto sob o ponto de vista ambiental, mas principalmente sob o aspecto cultural e social”, completa.

O título RI.CA.ATINGA quer dizer que a caatinga é rica e viva, e seu povo, assim como sua vegetação, é resiliente e feliz.

O trabalho teve a orientação da professora Catharina Pinheiro Cordeiro dos Santos Lima, da FAU, e pode ser acessado clicando aqui

Para ler a notícia na íntegra, acesse: https://jornal.usp.br/ciencias/vegetacao-inteligente-e-riqueza-cultural-a-caatinga-que-e-muito-mais-que-seca-e-escassez/

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